O rio corta a cidade, dizem, mas o rio não corta, de verdade. O que corta é vê-lo triste, esquecido e abandonado. O burburinho de suas águas é o seu choro, o seu lamentar cotidiano da vida que lhe foi ceifada, da liberdade que lhe foi tolhida. O rio não corta a cidade.
O rio, todavia, ainda vive n’alguma memória antes da chegada do deus progresso. Lá, no sagrado existir do lembrar, crianças brincam em sua torrente lavando seu corpo com o sabão caseiro. No sagrado da memória sempre repleta de reconstrução, os peixes ora têm meio quilo ora quilo e meio. No sagrado ato de lembrar o rio sempre é mais que um existir. O rio é vida e vida pouco há sem o rio deslizando pela terra por aqui e por ali.
Mas o homem não cuidou do rio, cuidou do seu bolso e do seu olhar infinito de tudo querer ter. O homem não se satisfaz com o pouco que tem justamente porque acha que o que tem é pouco. O homem luta incansavelmente por coisas que não possui e quando as adquire é por elas possuído. O rio tudo dava, tudo oferecia, até quando se enfurecia e não adianta reclamar da Mãe Natureza! Aqui, onde somos passageiros ela é infinita e não nos cabe julgá-la.
Hoje nós crescemos e o rio se apequenou, não de verdade. Na verdade somos nós que o menorizamos, menosprezamos e o maltratamos. Do fundo da terra tiramos o que lá deveria sempre estar, a ‘pedra preta’ do progresso, esburacando as veias de todos os outros rios que nos circulam e nos abraçam com carinho. Não cavamos buracos para morar, como o fazem os animais. Cavamos buracos para enriquecer uns poucos e agora corremos riscos de não ter mais água boa para nossa saúde.
Porém, o rio sufoca em outros lugares, no próprio leito onde vive há milhares de anos. O homem não pode ver suas margens na perfeição de serem indomadas e tenta domá-las. Então, a cada boa chuvarada o rio se revolta e exige o que é seu direito. Antes, árvores atenuavam suas cheias, hoje o homem as derruba sem piedade nem respeito. As árvores atrapalham a lavoura, dizem.
Enfim, o rio continua e continuará. Nós, por outro lado, mal sabemos onde podemos chegar. Em nossas casas não respeitamos o rio. Não respeitamos os rios em nossas ruas. As fábricas não respeitam os rios nem nossos políticos. O rio está na cidade? Melhor seria dizer que a cidade tenta se apossar do rio sem saber que o rio não precisa ser de ninguém porque de todos ele sempre foi. Como sempre foi nosso rio Mãe Luzia.