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A banalidade do mal em tempos sombrios

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E daí que temos um monstro a solta para nos ensinar uma lição, não é mesmo? Não, não é. Mesmo! Monstros são seres imaginados que carregam estigmas e atributos físicos ou não que destoam drasticamente do que configuramos como humano. Até mesmo no medo e na insignificância nossa perante a desmesurada e suposta feiura de um monstro, nos colocamos num altar de superioridade: o outro é o monstro, o maligno; o humano sou eu.

A filósofa judia Hannah Arendt fugiu da Alemanha nazista porque lá havia um ‘monstro’ também. Aquele ‘monstro’ não tinha chifres, nem rabo em seta, não tinha garras ou dentes gigantescos, não era um monstro de pele vermelha ou preta nem cheio de pelos ou músculos. Era tão somente um ‘monstro social’, era uma ideia. O nazismo foi o ‘monstro’ que fez Arendt fugir da sua casa, assim como muitos fizeram. Porém, como sabemos, milhões não conseguiram e tiveram que enfrentar aquele ‘monstro’. Enfrentar, infelizmente, foi algo que milhões sequer conseguiram e foram consumidos, não por um monstro demoníaco, mas pela força mortal de uma ideia movida por homens e mulheres com dentes brancos, pela clara e milhões de olhos claros e faces ruborizadas. “E daí se não eram monstros reais?”

Passados alguns anos após o fim da II Guerra Mundial, Arendt foi convidada a assistir ao julgamento de um daqueles ‘monstros’, um dos grandes dentro da hierarquia do partido nazista. Lá estava ela em Jerusalém presenciando em primeira mão as palavras de Adolf Eichmann. Arendt, filósofa então, participava do julgamento na qualidade de ‘repórter’ e, como judia, podia-se esperar que sua matriz étnica ditasse o seu julgamento pessoal sobre o carrasco nazista. A razão, contudo, teve seu espaço.

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O que Arendt viu naquele dia foi apenas um seguidor do partido, um funcionário dedicado às ordens do seu “führer”, alguém que seguia rigidamente as regras do “reich”, alguém que não questionava aquilo que lhe mandavam fazer. Arendt percebeu em Eichmann não um monstro, mas um ser humano comum, um ser humano banal. O carrasco nazista apenas seguia cegamente as ideias do seu partido, as palavras ditas pelo seu líder, Hitler, um líder construído pela força das palavras carismáticas que dirigia ao seu povo. Não importava o quanto aquelas palavras pudessem ferir alguém ou algum povo. Não importava se aquelas palavras fossem palavras ruins, não religiosas, não importava sequer se fossem palavras demasiadamente deselegantes. As palavras, as ideias, os atos do líder maior supremo, salvador mitificado da raça ariana, eram maiores que qualquer coisa. Eram maiores, inclusive, que os ‘monstros’ reais que deveriam ser eliminados da face da terra: judeus, negros, homossexuais, deficientes, ciganos, comunistas.

No julgamento Eichmann se mostrou assim, um funcionário dedicado movido pela ideia correta, no seu ver, apenas seguindo o ideário do partido. O mal, percebeu Arendt, não é algo praticado por um diabo. O mal é feito por um ser humano, comum, ‘normal’ como outro qualquer. Quando irrefletido, o mal se torna banal, é naturalizado, é justificado como uma coisa qualquer, necessária, do dia a dia. Pior ainda: quando o mal praticado é em nome do bem maior, quando aqueles que governam praticam o mal, principalmente com suas palavras e atitudes, e mesmo assim são idolatrados cegamente por seus seguidores, o mal se amplifica e torna-se total. Foi assim na Alemanha nazista, na Itália fascista e também com Portugal, Espanha e União Soviética. O ‘monstro real’ teve nome, o Totalitarismo, a ‘máquina’ de matar do Estado em que o líder da nação movia os rumos futuros com suas palavras.

Com Arendt aprendemos que o mal não está longe de nós. Idolatrar cegamente alguém é dar-lhe poder para fazer o que quiser e, ‘quando a ficha cair’, se é que vai, de que valerá dizer: “Eu não sabia, eu fui iludido!”

A mídia, em todas as suas formas de expressão, banalizou também o mal. Não nos choca ver num filme de Hollywood as pessoas sendo mortas, afinal o herói é quem salva os outros do vilão. Quando há um maniqueísmo estabelecido pelo roteiro, qualquer maldade é justificada e aceita. Assim agimos na vida real e por isso aceitamos as mazelas perpetradas por nossos líderes políticos. No caso brasileiro a banalidade do mal toma outras faces também, estranhas, bem estranhas. Afinal, como explicar um patriotismo que odeia o cinema nacional porque nossos filmes possuem muitos palavrões, mas justifica outros?

Como dizia Darcy Ribeiro, somos um povo em fazimento, com ingredientes tão ricos, porém sem a capacidade para uma boa liga entre nós. E já que não damos certo mesmo enquanto povo, que se f…! Opa, não, ainda não! Já passou da hora de deixarmos de ser um adolescente birrento para nos tornarmos um adulto maduro.


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