“O deserto se espalha”, penso após uma rápida leitura de Nancy Mangabeira Unger. Peguei seu livro “Da nascente à foz: o recado do rio” na biblioteca agora ao meio dia e deleitei-me na leitura de suas primeiras trinta páginas. Me vi envolvido nos seus dizeres refletindo em silêncio sobre as ocorrências diárias do nosso cotidiano já tão rotinizado. “O deserto se espalha e se amplia”…
O deserto é o deserto de ser, não a negação involuntária ou mesmo voluntária do Ser. Não, não isso. O que se desertifica cada vez mais são as possibilidades de ser de cada pessoa, de cada indivíduo, de cada sujeito, de cada ser humano que ainda não sabe como chegou a ser humano. Ser é um verbo cuja qualidade mais intrínseca é a da estar, justamente, sendo. Daí decorre a indagação de quem somos e suas correlativas: como somos, porque somos e para que somos. Na medida do que observamos pelas redes sociais, gradativamente num crescendo, somos uma negação de nós mesmos. Estamos sempre no limite do ser como são os outros e na tentativa de negar não ser seu contrário. Não somos realmente, copiamos o que nos é oferecido e aceitamos sem resistência alguma. Continuamos negando todas as possibilidades e por isso trazemos sofrimento ao mundo.
Para desse deserto invisível que nos toca e nos influencia há um deserto mais tangível, mais visível, mais preocupante e menos evocado por nossas preocupações: o deserto do real, o deserto da real destruição do meio a nossa volta, recordando que este meio que nos envolve é nossa casa onde quer que estejamos. A lama em Mariana afeta minha vida da mesma forma que meu ser no mundo afeta o coletivo distante. Somos interdependentes e necessários uns aos outros, cada um de nós é o outro do próximo latente ou ausente e, mesmo que não saibamos ou não vemos e sentimos, precisamos de tais presenças ou ausências para justificar nossa própria existência individual. Ao degradar-me, também degrado ao outro e ao seu mundo, nosso mundo. Ao degradar nosso meio ambiente degradamo-nos em conjunto, por individualistas que almejamos ser.
Em minhas andanças pela natureza observo como ainda há locais ‘puros’ tão próximos de nós. A impureza lá chega quando nos extasiamos de coisificar o mundo natural em meras imagens congeladas para um compartilhamento massivo e efêmero pela rede mundial de informação. Assim assimilada, a nova informação rapidamente se desvanece no seu existir. Tomada como o belo, nem mesmo será guardada no álbum de fotografia, pois esse inexiste no mundo da pressa. Contrapondo-se a esse sentimento, poderíamos imaginar que tais recordações mantenham-se fielmente na memória, o que não se consolida. Tendemos a esquecer de nós mesmos, quem dirá de nossas experiências, já diria Benjamin.
E o deserto se espalha. Quando em todos reinar o império da conformidade já não seremos um mar de indivíduos, mas sim grãos de areia sem profundidade alguma no deserto criando pela nossa incrível capacidade criativa de negar nossa imaginação, de negar nossas ‘invenção e reinvenção’ diárias. Será que poderemos nos reinventar algum dia? Que resistam os oásis de ser!